Os impactos sociais do rastreamento de contactos
Esta é uma tradução livre de um issue colocado no repositório da DP3T, uma iniciativa de contact tracing que procura preservar a privacidade dos utilizadores. Este quasi-manifesto levanta imensas questões que vão muito para além do técnico, e enquadra o rastreamento de contactos num discurso bio-político bem raro nos discursos que por aí se ouvem.
Estamos a levantar esta questão por preocupação com a forma como as “apps de rastreamento de contactos” estão a ser propostas sem ter em conta a complexidade do social. As discussões atuais apresentam apenas duas hipóteses para viver: uma sob vigilância e a outra sob confinamento. Nós exigimos a possibilidade de pensar uma outra via para a co-habitação futura.
A corrida atual em direção às apps de rastreamento de contactos corre o risco de enquadrar a exposição ao covid-19 como um problema exclusivamente técnico, privilegiando portanto o conhecimento tecnológico como o único foco de possíveis avanços. O número de questões a ser colocadas neste fio de discussão que são de natureza técnica confirmam que isto está de facto a acontecer. Estamos a apelar a uma discussão expandida e cuidadosa sobre o design e implementação das apps de rastreamento de contactos. Precisamos de ter em conta as diversas e complexas relações sociais, e esta discussão terá de envolver muitas mais vozes, não apenas as de governos, engenheiros, epidemiólogos e outras autoridades.
Sentimos que é já tardio e necessário repensar a forma como a tecnologia é desenhada e implementada, porque as apps de rastreamento de contactos, a ser implementadas, vão codificar a forma como vamos viver as nossas vidas e não apenas por um curto período. Elas vão estabelecer condições normativas para a realidade, e irão contribuir para as decisões sobre quem pode ter liberdade de escolha e decisão… e quem não pode. Estas apps vão co-definir quem é que pode viver e ter uma vida, e as possibilidades para percepcionar o próprio mundo. Isto significa considerar a forma como os tecnólogos e as tecnologias impregnam e estão impregnados pelas normas sociais; no entanto esta discussão tem de ver os tecnólogos como tendo algo em jogo também.
Também temos de recordar que estas não são novas preocupações. A história do debate crítico e das intervenções radicais na hegemonia tecnológica oferece um arquivo rico de como o solucionismo tecnológico, sem resistência ou consciência, vai ser inevitavelmente complacente com o capitalismo racializado, constituído por interseções desiguais de raça, classe, capacidade e género.
Epidemiologia, vigilância e saúde pública
- A epidemiologia e a saúde pública têm servido práticas coloniais e divisões raciais, classistas, sexuais e contra pessoas com deficiência. Por exemplo, no estudo “Tuskegee Study of Untreated Syphilis” foi transmitido aos participantes que apenas estavam a receber cuidados de saúde por parte do governo norte-americano, escondendo o verdadeiro propósito. https://en.wikipedia.org/wiki/Tuskegee_syphilis_experiment
- Além disso, precisamos urgentemente de olhar para violência que é produzida quando a vigilância e a epidemiologia trabalham juntas. Basta recordar as brutalidades mobilizadas em nome da vigilância durante a epidemia da sida, que mostram claramente os problemas do contacto entre autoridades de saúde e parceiros comerciais.
Em casa ou sob vigilância?
- Estamos atualmente a ser confrontados com apenas duas opções, um paradigma de implementar uma app de rastreamento de contactos ou continuar o distanciamento social em “casa”. No entanto, isto parece uma falsa dicotomia. Rastrear contactos é mesmo a melhor resposta? Quais são as outras opções?
- Porque é que a vigilância se tornou o único recurso através do qual podemos agir? Porque é que a vigiância se tornou a única possibilidade para a ação?
- Precisamos de poder discutir publicamente como é que as comunidades podem gerir os seus próprios cuidados e exposição a este vírus e, possivelmente, a outros. É preciso determinar se é através de uma app, se a sua arquitetura deve ser descentralizada ou centralizada, mas também existir a possibilidade de NÃO empregar esta tecnologia.
Quem decide?
- O poder de decisão vai ser dado às comunidades? É preciso colocar a questão sobre para quem e para quê é esta app de rastreamento, e como é que ela resolve ou não as formas como as comunidades se querem proteger e gerir a exposição. O desafio urgente é como facilitar uma discussão pública para que as comunidades possam desenhar, testar e moldar os métodos de proteção, cuidados e gestão da exposição.
- Como é que isto pode ser feito sem replicar uma versão pobre do design participatório que envolve representantes pré-selecionados do estado, negócios, academia e por vezes comunidades que são identificadas como “estando preocupadas”. Propomos em vez disso chamar cúmplices que juntos possam partilhar os riscos porque já têm experiência neste jogo. Só temos de pensar no PROFILING racial que toma lugar em apps semelhantes, produzindo e reproduzindo um capitalismo racializado, ou as abordagems de design de apps que excluem sistematicamente qualquer pessoa que tenha qualquer tipo de deficiência ou não corresponda a uma capacidade físíca e psíquica total, para concluirmos que isto é necessário.
- Não podemos assumir que todas as comunidades querem e precisam da mesma abordagem para gerir a exposição através de dispositivos móveis, nem que elas querem ou precisam das mesmas soluções universais. Como é que podemos discutir criticamente e avaliar continuamente quem é que esta tecnologia está desenhada para proteger, e quem é que está a ficar de fora?
- Esta proposta para o Rastreamento de Proximidade Descentralizado Preservador da Privacidade é importante porque ela inclui uma reflexão muito necessária sobre como e quando a app seria desmantelada no momento em que as pessoas a deixarem de usar. Mas também podem existir razões externas para usar a tecnologia, tais como ter acesso a um espaço público ou a um edifício residencial. A sua arquitetura descentralizada parece bem mais razoável do que propôr controlo centralizado, mas ao distribuir a responsabilidade pelos indivíduos, precisamos de ter em conta que deixar de usar a app poderá não ser uma escolha individual.
- O que podemos aprender com aqueles que se envolvem com tecnologias e infraestruturas “velhas”, manipulando-as de uma forma que não serve o capitalismo racial? Talvez o desenrascanço seja o que precisamos, mais do que o design. Qual é o significado de os tecnólogos preferirem ser inventores em vez de re-utilizadores? Este discurso colonial é precisamente o impulso que alimentou o complexo de salvador-do-primeiro-mundo durante as revoluções árabes.
- As infraestruturas têm de incluir a criatividade humana e tecnológica. É importante recordar que ainda há coisas que podemos fazer sem tecnologia. Por exemplo, existe ainda um amplo valor político na comunicação direta entre pessoas para um potencial de rebelião. O risco de esquecer isto é voltar-nos para o desconstrucionismo arriscando também desmobilizar a colaboração humana.
O não-estar-infetado como norma
- De que forma poderemos evitar a presunção que não-estar-infetado é a norma? Como evitamos o (re-)estabelecimento de uma condição que estipula que o bom cidadão ou trabalhador deve provar o seu estado de saúde? Como podemos lidar com a responsabilidade colocada no indivíduo para apresentar prova da sua saúde? Como evitamos estabelecer a assunção universal de que todas as pessoas querem fugir à exposição (ou infeção)? Dar-se-á o caso de que estas apps privilegiam automaticamente aqueles que não estão infetados, assumindo por exemplo de que não precisam de ser alvo de vigilância?
- De modo mais geral, como é que a tecnologia pode ser confrontada para considerar as suas próprias normas, interesses e riscos mais criticamente? Os engenheiros são parte da sociedade e estão a ser parte deste debate, mas não a única parte e não são também os únicos com conhecimentos especializados. Uma análise profunda da relação entre tecnologia e necessidades sociais tem de estar associada a qualquer implementação técnica que exista.
- Temos de reconhecer os engenheiros como parte do social complexo, com as suas próprias normas e ângulos cegos.
Infraestruturas extrativas
- As apps de rastreamento de contactos vão aumentar a dependência de dispositivos móveis, que por sua vez vão necessitar de uma maior extração de recursos e maiores níveis de exposição tóxica nas comunidades envolvidas. Temos de perguntar quem vê a sua integridade ameaçada por estas apps, que também sofrerá ainda mais danos físicos com o seu uso? A proposição de uma app como a resposta à crise é um prolongamento do desígnio da expansão das infraestruturas computacionais, para a proteção de algumas vidas a custo de outras, resultando na produção e reprodução do capitalismo racial.
- Os smartphones e computadores são os maiores utilizadores industriais de ouro. A extração do outro cria uma variedade de ameaças ambientais e ocupacionais relacionadas com a exposição ao mercúrio, desflorestação e contaminação das águas, com efeitos significativos nas comunidades próximas dos locais de extração. Na resposta ao covid-19, precisamos de perguntar qual é o cálculo que está aqui a ser feito, que valores são colocados nas vidas e nas exposições, quais vidas importam e quais não? O que significa desenvolver tecnologias para combater um vírus sem considerar os impactos maiores e as exposições tóxicas? Como é que uma app pode mitigar estes danos? É sequer possível?
- Como se pode facilitar uma discussão pública para que as comunidades possam desenhar, testar e moldar métodos de proteção não de vírus, mas de modos de existência extrativos?
- As apps de rastreamento vão depender de um maior uso e adoção de infraestruturas cloud e redes de comunicação comerciais, que são mantidas e tornadas lucrativas por multinacionais. Elas estendem o mercado da saúde público para estas empresas e cria uma dependência renovada nelas por parte de governos, organismos de saúde e comunidades. Como é que podemos assegurar que as multinacionais, através da implementação de serviços para apps de rastreamento, não vão capitalizar com a vida e com a morte para fazer lucro?
O grupo por trás da proposta de Rastreamento de Proximidade Descentralizado Preservador da Privacidade providenciou generosamente um espaço para a discussão, o que não é o caso com quase nenhum outro projeto de rastreamento ou de saúde a ser proposto ou implementado, e nós reconhecemos este esforço. As questões que levantamos podem parecer um peso demasiado grande para o projeto, mas têm mesmo assim de ser endereçadas. O momento do covid-19 não pode ser business as usual, para manter as mesmas relações de poder, mas pode sim ser um momento para, juntas e juntos, transformarmos as nossas práticas.
Pelo Institute for Technology in the Public Interest,
Miriyam Aouragh
Helen Pritchard
Femke Snelting