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sobre os calos técnicos e as lombas filosóficas que encontro enquanto tento pôr computadores a fazer o que eu quero

Relatos de pedagogias remotas

15 de abril de 2020 — Ricardo Lafuente

Tal como todos os professores, fui recentemente confrontado com a urgência de passar a um modelo de ensino à distância. E tal como a maioria, encontrei-me muito pouco preparado para essa transição de emergência. Volvido mais ou menos um mês desde o momento em que se tornou claro que teríamos de dar aulas à distância, aproveito agora para documentar alguns dos princípios, reflexões e conclusões que estão a motivar a minha metodologia para esta estranha forma de fazer escola.

Algum contexto antes de continuar. A Ana Isabel Carvalho e eu começámos em setembro a dar aulas no departamento de Design de Comunicação da ESAP, com disciplinas dedicadas ao design na web. Neste semestre, estou eu a dar uma cadeira sobre design de interfaces, após uma introdução ao código na web no primeiro semestre, enquanto que a Ana leccionou uma cadeira de projeto e design para a web. Estar apenas eu a dar aulas neste semestre revelou-se um acaso afortunado para as coisas correrem menos mal -- a quarentena imposta mais tarde fez com que um de nós tivesse de estar mais presente nos cuidados ao nosso filho. Nesses entretantos, a Ana e eu fomos trabalhando bem mais do que seria saudável para conseguir chegar a um sistema de aulas à distância que pudesse ser sustentado durante um par de meses (um cenário pessimista na altura, mas agora revelou-se acertado). Apesar de ser eu quem está a dar as aulas e a acompanhar os trabalhos, toda a construção dos sistemas e métodos que vou descrever neste e em futuros posts são um sério trabalho de equipa.

Após algum nervosismo inicial, o diretor do curso deixou-nos à vontade para ensaiar e avançar com as metodologias que sentíssemos adequadas. Daí, tentámos endereçar esta situação como um problema de design. Sabíamos já que vários alunos estavam com as suas rotinas despedaçadas e alguns ainda a ter de trabalhar em empregos muito exigentes, particularmente em época de crise. Também vimos como primeira prioridade assegurar a privacidade e integridade de quaisquer plataformas que empregássemos, obrigando a olhar para além das soluções "cloud" do costume. E finalmente, sentimos necessidade de questionar e ir mais além do que os modelos convencionais de e-learning, com plataformas holísticas que tentam mediar todo o processo de aprendizagem e avaliação (Moodles e afins).

A nossa experiência de vários anos a trabalhar à distância enquanto designers com clientes no estrangeiro tem sido particularmente útil. O nosso contacto com a área do jornalismo de dados também nos familiarizou com os MOOCs, de eficácia variável mas que introduzem muitos novos métodos e tácticas de transmitir conhecimento por via digital. Com isto, sentimos que poderíamos analisar as partes do processo pedagógico, retirar as que não nos servem, e idealizar metodologias e workflows que pudessem responder à necessidade de uma framework estável que pudesse sustentar as nossas aulas online.

Assim, identificámos um conjunto de premissas a que precisaríamos de dar resposta:

  • Assincronia. Mesmo mantendo as rotinas pré-crise e propondo a continuação de aulas à mesma hora que o habitual, é preciso dar resposta a quem não pode estar presente -- não é preciso enumerar os casos e possibilidades em que pessoas confinadas podem ter os seus planos e prioridades alterados. Por isso, procurámos formas que não prejudicassem quem não tem um horário regular, e permitir nesses casos o acesso a tudo o que se passou antes, ao ritmo possível de cada pessoa.
  • Software livre e open source. Já há mais de uma década que usamos exclusivamente ferramentas livres nos nossos contextos profissionais, artísticos, pessoais e experimentais. Sabíamos existir uma boa variedade de ferramentas promissoras vindas da comunidade livre; sabemos também das estratégias questionáveis de entidades proprietárias que disponibilizam ferramentas atractivas (Zoom, Google Classroom, MS Teams, entre muitos outros) que apresentam também riscos para a privacidade e autonomia. Por isso, a nossa escolha recairia sempre em ferramentas cujo código é aberto e cuja reutilização é livre.
  • Autonomia e self-hosting. A única forma de termos controlo sobre as ferramentas que usamos é, para além de evitar soluções proprietárias e preferir o open source, tê-las instaladas nos nossos próprios servidores. Por sorte, tínhamos acabado de adquirir um computador desktop decente para o nosso escritório cuja utilidade ficou limitada com a quarentena, pelo que podíamos utilizá-lo como servidor para alojar as plataformas que precisássemos -- e foi neste ponto que a nossa experiência com o self-hosting (instalar e manter plataformas no nosso próprio servidor) se mostrou preciosa. Poderíamos ter enveredado por um alojamento convencional na cloud que nos pouparia algumas dores de cabeça, mas não pouparia a carteira. Como tínhamos o computador à mão, foi uma possibilidade que aproveitámos.

O self-hosting é uma estratégia trabalhosa: foram precisas várias dezenas de horas para montar, configurar, afinar, colocar no ar e desenhar tácticas de manutenção para cada uma das ferramentas que usamos. No final, a recompensa é um sistema que controlamos integralmente, sem dependência de fornecedores, e com total autonomia: sabemos onde estão os nossos dados (e os dos nossos alunos), sabemos que estão seguros -- não totalmente porque há sempre possíveis riscos, mas bem mais do que se confiássemos num serviço cloud com servidores do outro lado do mundo e termos de serviços profundamente armadilhados.

Vou tentar detalhar nos próximos posts os pormenores da nossa implementação técnica, mas importa já expôr as ferramentas que adotámos:

  • Rocket.chat para conversa em texto, do mesmo tipo de plataforma que o Slack. Esta tem-se revelado fundamental como alternativa a aulas por videoconferẽncia, que sentimos ser um meio limitado que não responde à premissa da assincronia (um assunto a desenvolver num post em breve). A esta plataforma chamámos "Recreio": porque na escola é o local onde nos reunimos em caso de emergência, mas também devido a uma expressão popular de que às vezes se aprende mais no recreio do que na sala de aula (um pouco taxativa, mas a mensagem é que no recreio também se aprende!).
  • Um mini-site com vídeos que vamos gravando com os conteúdos programáticos. Dos MOOCs retirámos a conclusão que vídeos curtos (máx. 15 min) a expôr assuntos individuais são o melhor formato para este tipo de meio. Recorremos ao OBS (Open Broadcasting Studio) para os gravar, VidCutter para os editar e cortar, ffmpeg para converter para mp4, e um gerador de sites estáticos que escrevemos para os publicar.
  • Um Raspberry Pi com um webserver para os alunos poderem publicar os seus trabalhos. Como a área das nossas disciplinas é a web, é algo que precisávamos e que, felizmente, já havíamos implementado e testado no primeiro semestre com os alunos, pelo que já estava tudo no sítio para continuar.
  • Open Streaming Platform para transmitir diretos, um formato mais próximo do Twitch ou Youtube Live do que da videoconferência tradicional. Inicialmente, pareceu uma possibilidade útil para aulas à distância, mas foi rapidamente suplantada nos nossos planos pelo Recreio/Rocket.chat. Mesmo assim, vamos fazer experiências mais à frente para determinar se é um formato com potencial de complemento para as outras duas plataformas.

Até agora já decorreram 3 semanas de aulas (excluindo as férias da Páscoa), pelo que já pudemos tirar várias conclusões. Vou tentar documentá-las em mais posts, bem como ir mais a fundo sobre como cada plataforma tem funcionado e as pormenores interessantes que tem potenciado. Felizmente, sentimos que estamos a obter bons resultados dado o carácter de emergência que todo este esforço tem tido. E faz sentido partilhá-los, porque este novo paradigma de ensino vai ter muita presença nos próximos tempos, e temos de falar sobre isso.

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